Entrevista Mário de Carvalho - O SABER É INCÓMODO, ESTÁ A MAIS, É MAÇADOR

Entrevista Mário de Carvalho  -  O SABER É INCÓMODO, ESTÁ A MAIS, É MAÇADOR

Entrevista
Mário de Carvalho
O SABER É INCÓMODO, ESTÁ A MAIS, É MAÇADOR

 

Antes da entrevista, socorre-se de uma folha em branco e de uma caneta, que pousa a seu lado. Hora e meia depois, terminada a conversa, a folha continua imaculadamente em branco. Mário de Carvalho explica depois que o hábito nasceu durante os interrogatórios a que era submetido pela PIDE, antes do 25 de Abril de 1974. Na altura, rabiscava figuras geométricas nas folhas, um estratagema para se alhear das perguntas dos polícias políticos. Outros tempos. Sobre os políticos de hoje diz que "são muito fracos" e que "o mundo deles é muito pequenino". Pelas palavras ditas de Mário de Carvalho percorre-se a actualidade. A escolha do novo Papa, de quem não espera "nada de novo", à "desvalorização dos intelectuais", "o endeusamento do capital financeiro" e a constatação de que a noção "do bem comum deixou de fazer parte das preocupações das pessoas que estão no poder actual". Vive-se uma época perturbante onde "o saber não tem lugar". Pelo contrário, atenta o escritor, "o saber é incómodo, está a mais, é maçador".
CELSO FILIPE cfilipe@negocios.pt, FILIPE PACHECO filipepachecoanegocios.pt
BRUNO SIMÃO Fotografia

Os nossos escritores são melhores do que os nossos políticos?
Não estou a ser exagerado, parcial ou panfletário se disser que, neste momento, os nossos políticos são muito fracos. Não estou a falar da eventual inteligência deles. Estou a falar da inadequação de muitos deles às funções, da incapacidade de compreenderem um fenómeno nas suas várias dimensões. Quando se diz que há fulanos que só atentam nos números, isso significa um bloqueio, unia incapacidade, de passar além disso. Dá a impressão de que há falta de mundo, ou seja, há falta de sentido das dimensões das coisas, de capacidade de comparação. Há um afunilamento do pensamento e o assentamento disso numa quantidade de dogmas pré-estabelecidos. São pessoas a quem foram inculcadas, à partida, uma série de noções que estão fechadas dentro delas e não são capazes de sair delas. O mundo delas é um mundo pequenino.

 

São pessoas limitadas?
Nesse aspecto, são. Por mais desenvolvidos, por mais capacidades individuais que tenham, e por mais inteligentes que sejam, estão afunilados dentro de uma concepção do mundo extremamente apertada, que não os deixa ver por cima do muro. Estão emparedados numa série de concepções dogmáticas. Há quem lhes chame ideológicas. Chamar-lhes ideológicas ainda é dignificar esse tipo de pensamento limitado, estreito e apertado.

Esse estreitamento está a ser transposto para a sociedade portuguesa?
Está a ser imposto à sociedade portuguesa. Transposto não estou a ver como. Estamos a falar de uma série de políticos que têm uma visão apertada, limitada, dogmática das situações. Mas não vejo que os portugueses tenham de ter essa noção.
Esse é o discurso que, todos os dias, se lê e ouve nos meios de comunicação social.
Não sei. Conheço mal os portugueses.

 

Porque diz que isso?
Porque procuro afastar-me daquela ideia de que o povo português é assim ou daquela maneira, de ter ideias feitas sobre o povo. Tenho sido surpreendido muitas vezes pelas reacções populares, que se exprimem designadamente através do voto, e não quero de forma nenhuma adiantar que o povo português está assim ou assado. Conheço os meus amigos, o que vejo na Internet, nos jornais. Somos 10 milhões, portanto não me atrevo afazer conjecturas acerca do povo português.

Nota que, neste momento, há uma feita de debate ideológico? Esse é um dos problemas de fundo?
Tenho a ideia de que há uma grande falta de debate cultural no seu sentido mais amplo. Tenho dúvidas de que muitos destes jovens que aparecem a exercer o poder neste momento e apronunciar-se sobre questões económicas conheçam bem Karl Marx, por exemplo. Não sei se Marx ou grandes autores do século XIX foram pura e simplesmente sonegados da sua formação. E receio bem que certas imposições dogmáticas, por vezes, se aproximem de um certo charlatanismo que, às vezes, perpassa no meio das ciências humanas.

 

Pode dar exemplos desse "charlatanismo"?
Toda a campanha que tem sido feita contra o Estado, contra a intervenção do Estado, os poderes do Estado, etc. Tem um objectivo.'Verificamos que as ideias feitas contra o Estado apenas têm a intenção de remover os obstáculos que o Estado ainda pode pôr no exercício das suas funções e num quadro de legalidade à progressão de certos interesses. Há interesses que estão interessados em que certos poderes do Estado sejam removidos ou atenuados. Não convém que haja regulação, que haja lei. A lei é um obstáculo, é umi embaraço. E, portanto, o Estado, como garante e defensor da lei e da regulação da vida económica, pode ser um incómodo. E toda a campanha feita contra o Estado, sem ponderar prós e contras, sem avaliar todas as componentes da situação, visa apenas remover um quadro legal que é incómodo à instalação e à prossecução de certos interesses.

Acha que a comunicação social tem responsabilidades?
A comunicação social funciona muito como um meio que repercute as ideias dominantes. Eu sou, sempre fui, um profissional liberal, escritor, não tenho de dar contas a ninguém, nem sequer ao meu editor. Eles nem sequer se metem no que nós escrevemos. Como advogado, trabalhei em vários sítios, mas sempre tive autonomia técnica e capacidade de decisão. De maneira que nunca tive patrões. Na comunicação social, as pessoas não decidem propriamente. Têm de prestar contas. Formais autonomia que haja por parte dos jornalistas e por mais esforços que façam no sentido da independência e na afirmação de uma deontologia, tudo isto faz parte desta máquina de compressão, multiplicando, divulgando e inculcando o mesmo sistema ideológico. Se pensarmos nesta frase "menos Estado, melhor Estado", o que é que os jornalistas têm feito? É repercutir esta ideia.

 

Mas essa ideia de menos Estado e melhor Estado não surge como resposta à constatação de um Estado grande e ineficiente?
"Menos Estado e melhor Estado" é um "slogan". Sem dúvida que a burocracia do Estado, a inoperância e a ineficiência de certos serviços se põem a jeito a esse tipo de críticas. Sem dúvida que a captação de certas actividades e de certos meios de intervenção do Estado pelos interesses é também um facto. Só estava a dar o exemplo de uma campanha ideológica que tem propósitos interessados.

E qual o papel dos intelectuais? Deviam ser mais activos nesta altura em que a palavra que a boca come é a palavra crise?
E uma questão extremamente interessante. Como é que os intelectuais - que aparecem desde o caso Dreyfus -, em meados do século XX tiveram tanta influência e havia nomes que circulavam por todo o lado e havia tomadas de posições colectivas, perderam essa influência. O nosso espaço de reflexão individual tem sido assoberbado, quando não eliminado, por uma pressão de uma comunicação social que se traduz, por exemplo, nas televisões e na imposição de estilos, de comportamentos, em certo tipo de informação, em certo tipo de espectáculo, que acabam por retirar a cada um a capacidade de reflexão. A curiosidade, por exemplo, é um factor de progresso, de reflexão, da indagação e transformação do mundo. A curiosidade é completamente retirada quando se constrói o espectador passivo, o espectador que não reflecte, um espectador que está colado às imagens que nos impõem, às informações. Praticamente todo o nosso espaço é ocupado pela comunicação social de massas, através das televisões, na componente de espectáculo e informação.

 

Os intelectuais não podiam ser mais pró-activos, procurando tomar posições públicas?
Tudo o que tenho estado a falar tem implicado uma desvalorização dos intelectuais. Há uma desvalorização da literatura, das artes, de uma forma geral. O espaço que é dado neste momento à literatura, às artes e ao cinema nos grandes meios de captação de massas é praticamente nulo, extremamente residual. Quando é residual, significa que é qualquer coisa que não tem importância. E quando as mentes estão condicionadas a certo tipo de informação que até lhes aponta uma certa forma de estar e de se comportar, é evidente que oque possa dizer um filósofo ou um escritor ou um cientista afasta-os completamente. É um pouco nivelar por baixo.

Em vez de o saber não ocupa lugar, vivemos uma época em que o saber não tem lugar?
O saber não tem lugar. O saber é incómodo, está a mais, é maçador. Vem um cientista falar de astrofísica, mas o que isso importa quando o que importa é a titilação quotidiana, é a pessoa estar sempre entretida Para quê? Para que vá comprar tranquilamente as coisas que são colocadas através dos anúncios. No fundo, as grandes televisões não são outra coisa do que máquinas de produzir anúncios. É como se fosse removida a cidadania, que é a capacidade de intervenção e fosse substituída pelo consumidor. Como uma pessoa apenas capaz de consumir e que só compreende um número reduzido de palavras.

 

E age e reage através desses impulsos.
A reacção por impulso leva ao consumo de coisas. Agora, a reacção por impulso que significa dar opiniões sem pensar à medida das aparências também me parece um bocado negativa Vejo as opiniões no Facebook e dá-me a sensação que, se as pessoas pensassem duas vezes, não diriam aquelas coisas. Eu próprio, como utilizador, já me tenho visto a reagir, a dizer rapidamente, a tomar posições, que se pensasse melhor, era capaz de não as tomar exactamente da mesma forma. Somos solicitados a intervir rapidamente, ainda por cima deixando as coisas escritas, a dizer as coisas escritas im-pensadamente. E, por outro lado, muito facilmente se reproduzem falsidades. Tenho encontrado, por exemplo, frases do Eça de Queirós que o Eça de Queirós nunca disse.

Porque é que aderiu ao Facebook?
É um pouco uma necessidade que, às vezes, uma pessoa tem de andar de autocarro para ouvir as conversas. É um pouco irmos no autocarro e no metro e ouvir as pessoas a fazer comentários também por impulso. E dá também para perceber um certo estado de espírito, para perceber a quantidade de pessoas sozinhas que há, a quantidade de pessoas que querem um contacto. No Facebook, nota-se que há pessoas que querem um contacto, querem ser reconhecidas, querem que haja uma voz do lado de lá que lhes responda

 

Encontra lá elementos que possam servir de inspiração para a sua ficção?
Não sei. Não é de descartar essa hipótese, que possa aparecer uma coisa ou outra Ou que possa vir a fazer um conto, por exemplo, sobre duas pessoas que se conheceram através do Facebook

Escrever é um prazer, uma necessidade, um processo doloroso
O meu processo criativo é simples. Escrevo de madrugada, depois de estar tudo sossegado. Incomoda-me muito, e cada vez mais, as interrupções e as solicitações, os estímulos exteriores. Tem de estar tudo quieto. E não escrevo muito por dia É como se durante todo o dia, quando converso, houvesse uma parte qualquer que não está ao nível do consciente, mas fosse elaborando coisas que se descarregam à noite. Escrevo três mil ou quatro mil caracteres o máximo. Depois esse fluxo para e entretenho-me noutras coisas. A parte da escrita que tem a ver com a conversação, com o andar de autocarro, com o captar as coisas em volta é feita durante o dia A parte escrita que é lançar no computador é feita na madrugada As circunstâncias levam a que um escritor, uma vez que passa a ser reconhecido e publicado, nunca mais deixe de o ser. E que haja solicitações. Uma pessoa engrena depois nesta maneira de viver e não há maneira de sair dela Mesmo que eu quisesse, não podia deixar de ser escritor. Esta facilidade de construir personagens, ambientes, situações vai sendo utilizada Agora a matéria plástica com que isso se faz, que é a língua, é extremamente complicada, oferece muitas resistências e é doloroso. Eu sou o tipo de escritor atormentado. Há o tipo de escritor que escreve com imensa facilidade. O Aquilino [Ribeiro], dizem, escrevia com uma extrema facilidade. Agora abrimos o ecrã e há coisas que nos incomodam e que vamos mudar, pelo que a progressão do texto torna-se extremamente difícil. Tenho um dever para comigo próprio e para com os leitores que é dar-lhes o melhor que sei e não ceder a certo tipo de facilidades. Há facilidades em mim que procuro contrariar.

 

Quais?
Uma delas, paradoxalmente, era a antiga facilidade de escrita Há que reprimir essa facilidade. As pessoas merecem outra coisa. Trata-se, no fundo, de criação artística É necessário não estarmos a repetirmo-nos, não estar a repetir os outros, estarmos a ser, de facto, originais, únicos e a acrescentar alguma coisa à literatura Há quem fique muito escandalizado com isso e pense que é muita arrogância. Mas eu penso que, quando escrevemos um livro, temos de acrescentar alguma coisa àquilo que já existe. Não vale pena estar a chover no molhado ou a repetir processos.

A situação política justificava uma literatura mais comprometida?
As figuras políticas, as personagens políticas, mudam muito rapidamente e não escrevemos para o momento que já passou. Escrevo um livro que pode demorar quatro anos, estou a pensar no "Deus Passeando pela Brisa da Tarde", que implicou muita pesquisa, e que pode ser lido em função da actualidade. Quando começo a escrever um livro, o quadro político é um. Quando é publicado, é outro. Quando é reeditado, é outro. Daí a 20 anos é outro completamente diferente, ao ponto de muitas vezes a leitura que se faz de um texto, num certo sentido, com o passar do tempo, ter o sentido completamente oposto. Ou seja, aquilo que parecia ser um texto progressista acaba por ter um efeito contrário. E também acontece o contrário, textos marcadamente reaccionários, que depois acabam por ter uma leitura diferente. De maneira que acho que anda muito mal quem jogar nesse panfleto, que é jogar na intervenção do momento.

 

Personagens como Cavaco Silva. Miguel Relvas, Passos Coelhoe Vítor Gaspar são matéria que se pode ficcionar?
Não será tanto aquela personagem propriamente dita mas um tipo abstracto que ela encarna, e que se calhar encontramos sempre pelos anos fora Assim como o Gouvarinho, do Eça, ainda pode representar, de certa maneira, uma forma de estar da política ou uma certa personagem da política, bem como o conselheiro Acácio. São tipos que são reconhecíveis através dos tempos. Porque a aposta é numa certa intemporalidade, porque são coisas que marcam o homem, apesar das diferentes circunstâncias que vão ocorrendo na sucessão do tempo.

Palavras como crise, austeridade, défice, dívida, recessão, pobreza. O que essas palavras lhe dizem? O que convocam para si?
No plano pessoal, trazem-me muita tristeza e muito desalento, porque passei uma boa parte da minha vida a procurar lutar por um mundo melhor, e tudo o que sejam factores que tornem o mundo pior confrangem-me, dão uma sensação de frustração e de falhanço grandes. Estamos colocados numa situação em que podemos voltar quase ao ponto de partida, àquele grande esforço que implicou tantos sacrifícios e tanto sofrimento, nosso e dos outros. Esse desalento é uma realidade. Sob o ponto de vista da escrita, como lhe disse, a circunstância do momento é apenas mais uma na formação do texto. Obviamente não pode deixar de influenciar, na medida em que, era o Michelet que dizia, tudo influi em tudo. Não vou trabalhar necessariamente com isso. Estará presente de uma forma transfigurada, não pode deixar de estar. Trabalho noutro plano e noutra dimensão de tempo, que não é do quadro presente.

 

Qual a sua opinião sobre a nova vaga de escritores « portugueses?
Conheço tão mal. E uma vergonha. O facto é que não me sinto muito habilitado a dar uma opinião.

Conhece o Gonçalo M. Tavares?
Tenho uma enorme admiração por ele. É um homem de uma extrema inteligência e elegância na maneira como aborda a escrita e reflecte. Está sempre a reflectir, sempre com uma grande proficiência e um sentido da palavra.

 

E o Valter Hugo Mãe?
Queria que fosse claro uma coisa. O facto de não estar ler esses autores não significa uma posição de menosprezo por eles. Mal seriam as coisas se a literatura portuguesa ficasse no tempo da Lídia Jorge, do João de Melo, etc. É bom que apareçam novos escritores portugueses, que sejam reconhecidos e que tenham impacto e importância Significa que as minhas leituras são muito egoístas e que estou virado para o passado. Estou a reler um Diário de João Chagas, um volume referente a 1918. Li "Todos os Dias são Meus", da Ana Saragoça, e gostei muito, achei o livro muito interessante.

Consegue viver-se só da literatura?
Consegue, se a pessoa tiver uma vida modesta. Se tiver um bom fundo de leitores e caso se façam edições sucessivas, consegue-se ter uma vida modesta. Mas não é só o caso português. Nos Estados Unidos acontece o mesmo.

 

Há um valor económico que possa ser atribuído à cultura?
Sem dúvida Se vir os montantes que mobiliza ou que estão envolvidos no cinema, no bailado, em certo tipo de espectáculos, como a música, são valores muito significativos. O assunto, às vezes, é abordado por esse ângulo, de que a cultura dá dinheiro, que exporta, que dá emprego.

Como lida com essa forma de ver a cultura?
Mal. Pode ser um ângulo interessante, mas para economistas. A faceta mais importante e vincante da cultura, para mim, é que é fortemente identitária. Há a cultura portuguesa. Vejamos as grandes figuras que a Igreja produziu. O Padre António Vieira é um espírito colossal. É um enorme escritor. A identidade portuguesa é marcada por esses grandes escritores, por grandes homens da ciência, por essa gente que foi transformando o mundo através dos tempos e que nos deixou um legado que continua vivo.

 

Faz alguma diferença haver um Ministério da cultura ou uma secretaria de Estado da Cultura?
Mais não fosse a diferença simbólica Quando se passa de um ministério para uma secretaria de Estado há, obviamente, uma intenção de despromoção. Não pode deixar de haver, não pode deixar de ser lido assim. Tradicionalmente, a cultura e a direita costumam estar dissociadas neste país. Noutros não é necessariamente assim. Em Portugal há esse afastamento que criou raízes.

Porque é que a cuitura está associada à esquerda?
Porque tem que ver com a imaginação, tem que ver com a alteração do mundo, tem que ver com as transformações, com a humanização das coisas, com a perturbação, a inquietação e a interrogação. A arte tem a ver com isto tudo. É preciso que fique claro, quando digo isto, que não diabolizo as pessoas. Tenho excelentes amigos de direita e algumas são pessoas encantadoras. Mas trata-se das grandes correntes sociais, da maneira de estar na sociedade, dos grandes conjuntos e não própriamente na individualização das posições. É que, na arte, pressente-se uma perturbação daquele mundo que se quer conservar, o mundo que se quer estático, com os interesses instalados, com as rotinas instaladas, com as verdades já adquiridas, um mundo construído. E o mundo da cultura põe isto tudo em causa, a arte põe isto tudo em causa, levanta novas hipóteses, novas interrogações. Na arte há sempre um sobressalto. E isso incomoda quem está tranquilamente instalado a tratar do seu jardim, a fazer as suas colecções de filatelia O que não impede que haja excelentes escritores e artistas de direita

 

Este Governo continua a ter legitimidade democrática?
Há muito tempo que tenho dito que não. O Governo não está a cumprir sequer as promessas que fez aos seus eleitores. Há muito tempo que passou esse limite. Os eleitores têm com este Governo um conjunto de medidas e de posições com que não estavam a contar. E o problema da legitimidade coloca-se ai, de facto.

« A Margaret Thatcher tinha o slogan do "não há alternativa". O salazarismo também dizia que não". »

 

Mas o Governo está limitado pelos credores.
Já a Margaret Thatcher tinha o slogan do "não há alternativa". O salazarismo também dizia que não. Procuram matar logo e secar todas as hipóteses de alternativa. Note que não estou a sonegar as enormes dificuldades que há.
Essa não alternativa tem a ver com o que referia atrás, com esse medo de questionar as coisas e entrar no território da insegurança. Porventura é disso que as pessoas têm medo.
No território da insegurança estamos nós. Mais insegurança do que esta não pode haver. Uma situação mais inquietante do que esta é muito difícil. O dizer que não há alternativa também é uma forma de calar bocas. E uma forma de reafirmar um dogma e de ocultar responsabilidades. Este endeusamento do capital financeiro já vem do tempo do Cavaco e dos seus amigos. A responsabilização que se está a tentar fazer do António Guterres, eu nunca votei nele, é desculpabilizadora.

 

Esse discurso pode ser comparado com a novilíngua do livro do Orwell?
Se quiser ir por aí, que é uma forma de castrar a imaginação, que pode ser uma forma de calar as bocas e cortar o pensamento e cortar hipóteses, penso que sim. Curiosamente sempre ao serviço de certo tipo de interesses. Quando se tiram 30 euros auma pessoa que ganha 400 euros, é significativo. Agora quando se tira um milhão a um tipo que tem 50 milhões, a coisa não tem significado nenhum, quando muito é o significado da sua sofreguidão. Mas não é a mesma coisa. As pessoas continuam com as suas piscinas, com os seus relvados, com os seus carros de gama alta, a comer nos melhores restaurantes. E profundamente injusto que uma parte pequena da população não seja incomodada Ouço dizer que não tem significado económico nenhum, mas tem um significado simbólico importante. Custa um bocado ver que certas pessoas, banqueiros e gestores, continuem com o mesmo padrão de vida e que não sejam incomodados. Eles até recomendam que os outros sejam atingidos. Se forem atingidos os ordenados dessas pessoas, diz-se que se vão embora Se 70% dos gestores se fossem embora e fossem substituídos por quem está no escalão anterior, o País ficava muito prejudicado com isso? Não. De maneira que um Governo que quisesses dar exemplos salutares, podia cortar por aí que não corríamos grande risco. Se calhar até beneficiávamos alguma coisa com isso. Há 10 ou 15 que são uns excelentes gestores, que vale a pena conservar e guardar. Quanto aos outros, podem ir-se todos embora e levar a sua malha de influências e de favores.

Acha que os políticos estão interessados no bem comum dos cidadãos?
Essa noção do bem comum deixou de fazer parte das preocupações das pessoas que estão no poder actual. Tenho a convicção de que não têm acesso sequer a esse tipo de noções, porque estão já formadas no primado do interesse individual. Se perguntarmos a um desses tipos dos meios prisionais, isso é coisa de otários. Penso que, para muitas destas pessoas que estão agora no poder, essa pergunta é de ingénuo. Não quero citar nomes, mas muitas das pessoas que são arguidas, se lhes perguntarmos sobre o bem comum, que é aquilo que nos interessa e afecta a todos, elas farão, se calhar, um discurso que queremos ouvir, porque convém. Mas terão alguma ideia do que é o interesse comum? Isso contará alguma coisa no seu comportamento e no seu estilo de vida? Obviamente que não. Estiveram cá para outra coisa, para se enriquecer, para tomarem o poder, para vingarem na vida. E o sentido da vida do chamado videirinho. Muitas vezes ultrapassa as barreiras da legalidade e cai no campo criminal Para uma pessoa dessas, considerações de tipo moral e éticas, são coisas de otários.

 

 

 

NA IGREJA CATÓLICA PORTUGUESA, PELA PRIMEIRA VEZ NA HISTÓRIA, HÁ VÁRIAS PESSOAS COM QUEM DIALOGAR
'Não espero nada de novo com a eleição do novo Papa"

 

Houve um "show" mediático, à escala mundial, em torno da escolha do novo Papa. Um Papa é assim tão influente que justifique este foco tão intenso?
O Estaline, em lalta, quando lhe sugeriram que o Papa fizesse parte das negociações de paz, disse: "Quantas divisões tem o Papa?". E muito célebre a frase do Estaline. Ele só via a materialidade do poder e a capacidade do seu exer¬cício através dos meios militares. Sem dúvida que o Papa tem grande influência, e o número de católicos no mundo é muito significativo, de maneira que todo este aparato me¬diático à volta da eleição do Papa se justifica. Não pode dei¬xar de marcar o nosso tempo.

Espera alguma coisa de diferente deste Papa?
Francamente, não espero nada de novo, a não ser que haja uma intervenção fortíssima do Espírito Santo, que o leve a um arrependimento muito bem vincado em relação ao que foi o seu passado. O silêncio perante a ditadura argentina, tal como é relatado nos últimos tempos, não é nada que faça esperar boas notícias daquele lado. Pode ser que esteja enganado. Pode ser que o tal fenómeno de arrependimento, de cair de joelhos e de repudiar esse passado de conivência com uma ditadura sangrenta, venha a ser revogado. Então ficarei agradavelmente surpreendido.

 

Qual a sua relação com a fé e a religião?
Não sou crente, de todo. Não venho de uma família religiosa. No Liceu, naquele tempo do Salazarismo, quando o padre que dava aulas de religião e moral perguntava quem é que não era baptizado, era sempre eu e, talvez, um judeu ou um descendente de unirepublicano. Dois ou três da turma levantavam o dedo. Estávamos dispensados, portanto, da comunhão e do crisma e desses actos rituais. Só não digo que sou ateu porque me parece uma expressão de grande arrogância. O meu agnosticismo é um não saber, porque há quem diga que o universo não é apenas uma máquina gigantesca. O universo é uma inteligência gigantesca
Saber tudo tapa o espaço à curiosidade, torna as coisas desinteressantes.
E divino. Não está sequer ao nosso alcance. Se Deus existisse, não seria seguramente aquele juiz de direito da comarca da Ursa Maior de que falava o Guerra Junqueira. Não é o senhor de barbas que nos aparece. Não será esse, seguramente. Eventualmente, seria qualquer coisa de completamente inalcançável pela inteligência humana. O cidadão comum não percebe, eu não consigo perceber o que é a teoria das cordas, o que são as 12 dimensões, o que são cientificamente os universos paralelos. Estamos com tanta perplexidade e tanta interrogação que está fora do nosso alcance. Há tantos dados lançados pelos satélites, que nem sequer as nossas máquinas e todos os computadores conseguem processar. Estamos a correr atrás dos dados que vão aparecendo. Não sabemos as surpresas que nos estão reservadas, mas quase de certeza não vamos encontrar essa face de barbas atrás de nenhuma galáxia nem no meio das poeiras.

Não acha que a Igreja tem um papel de relevo junto dos mais pobres numa altura de grandes dificuldades?
Com certeza. Fazer bem aos outros nunca fez mal a ninguém. Podemos falar longamente sobre o que penso da Igreja Católica Apostólica Romana. Iríamos calhar, inevitavelmente, naquele fenómeno monstruoso que aviltou este País e que mantém ainda sequelas que são detectáveis na nossa sociedade, que foi a Inquisição, que muitas vezes se procura, não digo esquecer, mas aguar. Foi marcante na nossa vida histórica Mas há aspectos da lgreja que me agradam. Para já, a extrema inteligência que mobilizou. E espantoso todo o esforço de construção teológica e de justificação de verdades que foram feitos durante os séculos. E absolutamente notável. Os cérebros que foram mobilizados pela Igreja Católica são absolutamente espantosos. E também os grandes escritores, os grandes espíritos que ali nasceram e se evidenciaram. E uma coisa notável através dos séculos. Na Igreja Católica, em Portugal, pela primeira vez na sua história, há várias pessoas com quem se pode dialogar, há interlocutores e há gente capaz.

 

Quer dar exemplos?
Os bispos que tenho visto a intervir, na televisão, com os seus vários estilos. Tenho uma admiração enorme pelo Padre Carreira da Neves. Não tenho a menor ideia de qual a inclinação política do senhor. Mas o espectáculo do saber e do rigor marca-me, impressiona-me. É qualquer coisa que valorizo muito. O Padre Tolentino é um homem brilhante. O Bispo do Porto também me parece uma pessoa muito viva, arguta e com quem será possível dialogar. Há outras pessoas, das quais não me recordo o nome, mas que vejo aparecer, que me parecem sensatas e capazes de dialogar e que estão talvez mais interessadas no outro do que na aproximação e subserviência ao poder. Porque também não nos podemos esquecer de duas coisas. Do papel da Igreja Católica durante os 48 anos de fascismo. Foi um papel de apoio aos poderosos e de conivência com o regime de uma forma que foi vergonhosa e que não é resgatada pelo facto de alguns católicos mais progressistas e mais abertos aparecerem em dadas fases da história da Igreja.