
Entrevista Gilles Lipovetsky - O CAPITALISMO NÃO ESTÁ EM CRISE. A CRISE É DA POLÍTICA. É DOS ESTADOS

Entrevista
Gilles Lipovetsky
O CAPITALISMO NÃO ESTÁ EM CRISE. A CRISE É DA POLÍTICA. É DOS ESTADOS
Desde meados dos anos 80 que Gilles Lipovetsky centra a sua reflexão na compreensão da "hipermodernidade" em que viveremos, embalados peja voragem de um consumo que terá deixado de satisfazer necessidades para preencher, sobretudo, vazios e frustrações. O filósofo francês, autor de obras como "A Era do Vazio", "Felicidade Paradoxal" e "Sociedade da Decepção", está de regresso a Portugal. Falámos de crise. Das crises. Da felicidade. E, claro está, de consumo. Lipovetsky vem com ganas de sardinhas assadas...
EVA GASPAR egaspar@negocios.pt
Conversámos quase uma hora ao telefone, numa manhã chuvosa em Lisboa e em Paris. A causa próxima foi o seu regresso a Portu¬gal. Gilles Lipovetsky inaugura nesta segunda-feira, 15 de Abril, "Conversas sobre Exportação", na Universidade de Aveiro.
Há virtuosidade na austeridade?
A austeridade é um bom princípio na medida em que significa disciplina e rigor, mas tem de ser aplicada em doses razoáveis sob pena de se matar o doente com a cura. É preciso restabelecer alguma ordem e corrigir excessos, mas a questão que nos podemos colocar é se, em particular nos países do Sul da Europa, esse processo não acaba por ser perverso e matar o crescimento económico que permite reduzir de forma duradoura os desequilíbrios que se querem corrigir.
Ou seja, a austeridade é uma coisa boa, mas não pode converter-se num dogma imposto de forma implacável. Não sou economista, nem especialista para poder julgar se estará a ser a dose certa, mas não compreendo a racionalidade que sustém esta quase religião com que se perseguem défices inferiores a 3% do PIB. Porquê 3%? Porque não 2% ou 4%? Nesta fixação, em particular, acho que estamos a ir longe demais.
A actual crise é também uma crise de excesso de consumo?
Os europeus continuam a poupar. Ao contrário do que por vezes se faz crer, a generalidade dos europeus não encaixa nessa simplificação muito difundida de que são uns povos incapazes de resistir ao apelo do consumo, uma espécie de marionetas facilmente manipuláveis pelo marketing. As taxas relativamente elevadas de poupança desafiam essa caricatura de consumidores alheados da realidade.
Há famílias sobre endividadas, e esse é um problema muito grave numa sociedade muito assente no indivíduo em que as redes de solidariedade familiar se esfumaram. Mas, sendo um problema no seio da sociedade, é excessivo dizer-se ser um problema da sociedade, de toda a sociedade.
Muito do seu trabalho e reflexão centra-se sobre o consumo do luxo, a sua massificação e de como se tornou numa válvula de escape da frustração. Em tempos de crise, como tem funcionado essa válvula?
Há um traço fundamental no consumo e no gosto pelo luxo que decorre da circunstância de este ter deixado de ser exclusivo do chamado mundo rico. Até aos anos 60, mesmo 70, as marcas de luxo faziam parte de um mundo também à parte, que não era conhecido nem desejado além dele mesmo, e que dizia respeito a um grupo circunscrito de pessoas.
A sociedade do consumo difundiu o ideal do bem-estar, da qualidade, do belo, dos sonhos materializáveis. E hoje as marcas de luxo são bem conhecidas de todos, desde logo dos jovens que, nos anos 60, não se interessavam e até recusavam o luxo, na medida em que era um reflexo de uma certa ideia de cultura burguesa da qual se queriam demarcar.
Acabo de vir do Brasil e é impressionante a febre pelas marcas de luxo, sobretudo entre os jovens! Mas, mesmo sendo uma economia super-dinâmica, a verdade é que no Brasil o consumo do luxo ainda está longe de ser acessível à generalidade da população. Já na Europa, mesmo em crise, um em cada dois europeus ainda consegue comprar com alguma frequência algum artigo de luxo, mesmo que seja um perfume. Ou seja, a democratização do consumo do luxo na Europa é um processo que não parece ameaçado. E, repare, não estou a falar da democratização do gosto pelo luxo, que tão pouco está em crise, como vemos pela dimensão gigantesca do mundo da contrafacção dos artigos de luxo.
Porque gostamos do luxo?
Na Europa? Porque é um símbolo, não tanto de sucesso, mas de qualidade.
Não serve mais para me diferenciar do outro?
Também. O luxo é ainda uma espécie de cultura...
Também massificada...
Não, pelo contrário. O luxo soube diversificar-se precisamente para fugir à massificação e aproveitar a democratização. Vou dar-lhe o exemplo da Hermes: cerca de três quartos da sua gama de artigos é anualmente renovada. Há sempre produtos ou variações novas de produtos. Há sempre coisas que ninguém tem. As marcas de luxo têm sabido tirar proveito e fomentar a democratização do consumo dos seus produtos sem deixar de apelar e responder a quem quer qualidade diferenciadora. E é por isso que as marcas de luxo não conhecem a crise. É um sector que, inacreditavelmente, continua a funcionar muitíssimo bem, com crescimentos fantásticos nos volumes de negócio.
Não mais na Europa.
De acordo. Estes números formidáveis têm vindo da Ásia e do mundo emergente. Mas, na Europa, a capacidade de resistência é também ela formidável. E julgo que o futuro para o sector continuará a ser de crescimento. Quando vejo a aposta que está a ser feita no regresso ao artesão, aos produtos feitos à mão, constato que se está apostar na criatividade. E criatividade é inovação, e inovação é crescimento.
Temos, portanto, grandes líderes à frente das empresas de luxo.
Sem dúvida. Temos no sector do luxo casos de sucesso inimagináveis. Em 1970, havia duas lojas Louis Vuittonno mundo, hoje há 450!
Mas a globalização permitiu crescimentos impressionantes em muitos outros sectores.
Sim, mas a seguir produziu também desastres! Portugal não vai nada bem e em parte é devido à globalização, não é? O sucesso a que me refiro das marcas de luxo vai muito além do efeito mecânico ou aritmético da globalização. Deveu-se a gente que soube captar e adaptar-se a novos mercados. Temos exemplos fantásticos de sucesso em França, em Itália e na Alemanha, com os carros de alta gama, por exemplo. Ou seja, temos gente muito competente nestes sectores - não temos é gente em número suficiente …
À frente das empresas – e dos Estados?
Bom, na Europa tem sido incrível a incapacidade dos nossos dirigentes em antecipar as dificuldades. O impasse em que nos meteram é terrível. Constato e reconheço que a situação actual é extremamente difícil. Mas também constato que os políticos não estiveram à altura de uma crise que nem souberam antecipar. Os políticos não têm estado à altura do projecto europeu. O mundo político não está à altura da situação histórica que vivemos.
Os políticos de hoje não estarão também a ser vítimas de decisões precipitadas ou incompletas to¬madas no passado por quem hoje chamamos de visionários?
Possivelmente sim. A Europa foi feita em marcha forçada, com demasiada pressa De¬veríamos ter construído uma Europa mais consolidada entre Nações que tinham níveis de desenvolvimento mais semelhantes e paralelos, e ter feito o alargamento aos poucos. Pôr a Grécia e a Alemanha no mesmo espaço de competição económica, com a mesma moeda e as mesmas regras, parece-me evidente que não é possível.
A Europa tornou-se um projecto político, mas as suas instituições não são políticas e o que temos é uma construção caótica que não nos permite uma acção articulada, numa altura em que os países do Sul atravessam grandes dificuldades - e a França, de resto, também. Agora, parece-me óbvio que não podemos renunciar ao euro.
Porquê?
Honestamente não sei. Não sou especia¬lista nessa matéria e sou modesto o suficien¬te para o reconhecer. Mas o que sinto é que não podemos renunciar ao projecto europeu e o euro está hoje no seu centro.
OS POLÍTICOS NÃO TÊM ESTADO À ALTURA DO PROJECTO EUROPEU
O mundo político não está à altura da situação histórica que vivemos
O que é preciso mudar no modelo político ou também o modelo económico? O capitalismo também está em crise?
Há vícios no sistema capitalista que é preciso corrigir. Mas a crise europeia não é uma crise do capitalismo. É uma crise da política. É uma crise dos Estados. E uma crise da dívida dos Estados. São os Estados que estão sobre endividados.
Há quem use argumento de que os Estados estão sobreendividados por causa de um sistema económico que deixou o capital de rédea solta.
O capitalismo suscita inúmeras críticas, mas a crise é dos Estados, é dos défices e das dívidas públicas que acumularam. A crise não é do capitalismo. No contexto do que eu chamo de hipermodernidade [conceito criado por Lipovetsky para descrever uma cultura do excesso, do sempre mais, num tempo marcado pelo efémero] não há alternativa ao capitalismo. O que podemos ambicionar são diferentes formas de regulação do mercado, em particular dos mercados financeiros. Porque houve, de facto, uma crise do capitalismo em 2008, com a crise do "subprime" [colapso no crédito imobiliário de alto risco nos EUA]. Aí sim, tivemos uma crise do capitalismo, uma crise financeira e económica Mas o que tivemos depois na Europa não foi, nem é, a mesma coisa,
Aqui, diz, temos uma crise da política. Mas por que razão temos na Europa uma crise da política?
Porque estamos a digerir o choque da mundialização, a partir do qual a manutenção dos nossos níveis de vida e de protecção social se tornou extremamente difícil de preservar. Porque estamos a competir com economias muito competitivas e perdemos centralidade. A Europa, o mundo Ocidental, não é mais o centro do mundo.
Onde está o centro do mundo?
Pois, essa é outra parte do problema... Estamos a caminhar para um mundo multipolar, cujo centro está a pender para o Pacífico, onde estão Japão, China, Coreia, índia, as economias mais dinâmicas, em termos económicos e demográficos.
Mas temos cartas para jogar na Europa É preciso reforçar os nossos sistemas educativos para criar elites e empresas que sejam inovadoras. A nossa única possibilidade de enfrentar a globalização é através da criação, da inovação. O exemplo francês, a esse propósito, é muito revelador: as marcas automóveis, Peugeot-Citrõen e Renault, pura e simplesmente, não funcionam porque têm sido incapazes de inovar, de se adaptar a um mercado que é mundial. E não é a tecnologia que é fraca. O que está a falhar é a estratégia industrial, são as técnicas de venda e, antes disso, a capacidade de antecipar e de se perceber o que pode vender. Não quero dar lições aos patrões da indústria, mas parece-me evidente que a Europa tem de vender qualidade e tem de vender produtos percebidos como sendo de qualidade. A Europa tem de dar cartas nos mercados da qualidade; nos outros estamos condenados à morte.
Enquanto se fomentam elites é preciso que os Estados travem a globalização, lhe imponham limites, reciprocidade? Ou é preciso, antes de mais, reformar o modelo social europeu?
Temos gente de enorme qualidade na Europa e acho que não se pode pôr a questão nesses termos, porque não vamos sobreviver sem liberalização. No caso de França, por exemplo, o Estado vai ter de liberalizar mais para fomentar a iniciativa, porque é o mercado, é a oferta, que comanda. Não podemos redistribuir e ter medidas de natureza social se não produzirmos. Não podemos inverter as coisas. Estou consciente de que, do ponto de vista ético e social, isso coloca problemas. Mas há o princípio inescapável da realidade: não podemos distribuir fatias de bolo se não houver bolo. Temos de nos concentrar em fazer o bolo. E temos gente fantástica, mas não somos os melhores, nem temos as melhores escolas. Essas estão nos Estados Unidos, em Singapura... E temos de ser líderes!
Líderes para continuar a vender para continuar a consumir... Somos hoje humanos mais felizes?
O consumo satisfaz necessidades, dá prazer, é por vezes uma forma de nos mimarmos, de cuidarmos de nós mesmos e também nos permite, ainda que momentaneamente, alhear-nos do que nos preocupa e desassossega Nessa medida, o consumo pode funcionar como um mergulho no esquecimento, um "virar a cara" aos problemas.
Mas obviamente que a felicidade é muito mais do que isso. A felicidade depende fundamentalmente da relação que o indivíduo tem consigo mesmo e da que estabelece com o outro, das relações profissionais e das que se estabelecem no contexto da vida privada, com a família, os filhos, com o amor...
Vou pegar no exemplo francês: desde 1970, o PIB duplicou, mas ninguém ousa dizer que ficámos duas vezes mais felizes. Desde então, consumimos três vezes mais energia e, de novo, ninguém ousa dizer que ficámos três vezes mais felizes.
Repare bem: parte da energia que consumimos e do PIB que produzimos resulta, por exemplo, de passarmos horas em engarrafamentos, fechados dentro de um carro, a "stressar"! E claro que isto já não é só consumo - é desperdício e esse é um problema grave que temos de enfrentar.
Agora se me pergunta se acho possível ou provável que se reduza o consumo privado eu respondo-lhe que não. E porquê? Porque o consumo nas sociedades contemporâneas tornou-se uma espécie de religião, de droga.
Uma droga que a lnternet pôs à distância de um dique.
Mas que aumentou muito menos a di¬versidade do consumo do que podíamos supor. A Internet aumentou enormemente a oferta, deu-nos a possibilidade de ouvir música de todo o mundo, de ver em casa um filme que dificilmente seria passado nas salas de cinema, de comer alimentos que nem sabíamos existir.
Contudo, continuamos a viver numa sociedade de "best-sellers": a oferta é muito diversa, mas o consumo é muito concen-trado. No cinema, nas editoras de livros e de música, é um punhado de empresas que fica como essencial do volume global de negócios. Vivemos numa situação verdadeiramente paradoxal: nunca houve tanta oferta mas, na realidade, o leque das escolhas que se fazem acaba por ser muitíssimo reduzido.
O excesso a provocar o mesmo que a escassez. Porquê?
Quando se confronta com algo que não conhece, você faz o quê? O mesmo que eu: segue a opção que outros fazem! Em Paris, há um milhar de museus, mas 80% da procura dirige-se a apenas 20. Muitas vezes quando entro num hipermercado, sinto-me perdido. Para que a diversidade se concretize é preciso ser-se criativo. E é aqui que entra a marca e é este contexto de híper excesso de oferta que acaba por ser a salvação de marcas: a marca orienta as escolhas ao representar um certificado de qualidade.
NÃO PODEMOS REDISTRIBUIR E TER MEDIDAS DE NATUZA SOCIAL SE NÃO PRODUZIRMOS.
NÃO PODEMOS INVERTER AS COISAS.
ESTOU CONSCIENTE DE QUE, DO PONTO DE VISTA ÉTICO E SOCIAL.
ISSO COLOCA PROBLEMAS.
MAS HÁ O PRINCÍPIO INESCAPÁVEL DA REALIDADE: NÃO PODEMOS DISTRIBUIR FATIAS DE BOLO SE NÃO HOUVER BOLO.