
«Como um estudante de 28 anos ameaça destruir a austeridade Rogoff comenta ao Expresso a polémica sobre erros nos estudos dos efeitos da dívida

«Como um estudante de 28 anos ameaça destruir a austeridade Rogoff comenta ao Expresso a polémica sobre erros nos estudos dos efeitos da dívida
O edifício teórico da austeridade abriu uma nova brecha esta semana com a revelação de erros num trabalho científico publicado há três anos.
Já tinha havido o episódio do multiplicador da austeridade, questionado pelo próprio FMI (num trabalho com a participação do seu economista-chefe), e levantadas dúvidas sobre a milagrosa austeridade ex-pansionista.
Desta vez, a 'personagem' sob fogo cerrado é o famoso limiar de 90% para a dívida pública (face ao PIB), a partir do qual o ritmo de crescimento da economia cai drasticamente.
Os pais desta ideia de linha vermelha da dívida foram Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart no estudo "Growth in a Time of Debt", publicado em janeiro de 2010 pelo National Bureau of Economic Research.
Os dois economistas têm-se debruçado a fundo sobre a questão das crises financeiras e sobre a dívida e haveriam de publicar novo artigo, em 2012, com a atualização dos dados.
Logo a 23 de janeiro de 2010, o Expresso deu conta das conclusões do estudo sublinhando que no caso português, onde os dados históricos iam de 1851 a 2009, não havia estimativa para crescimento com dívida acima de 90%, mas que quando esta estava entre 60% e 90% o PIB apenas avançava 1,4% ao ano.
Desde então, o artigo teve 450 citações em artigos científicos, de acordo com o Google Académico, e muitas mais no discurso político. A linha vermelha dos 90% tem servido para justificar austeridade em diferentes geografias e contextos. Esta conclusão foi, agora, posta em causa por um doutorando de economia da Universidade de Masschusetts, de nome Thomas Herndon.
Foi mais uma partida do acaso.
Um exercício para a cadeira de Econometria levou o jovem de 28 anos a testar os resultados do artigo de Rogoff e Reinhart (R-R) de 2010, usando a própria base de dados dos autores.
Ficou surpreso, conta à Reuters, pelos erros que encontrou no tratamento dos dados e na metodologia e os seus professores Michael Ash e Robert Pollin confessam que "o pressionaram" ao longo de um mês até que um artigo saiu publicado pelos três nos Working Papers do Political Economy Research Institute daquela Universidade, intitulado "Does ffigh Public Debt Consistently Stifle Economic Growth?
A Critique of Reinhart and Rogoff' ("Será que a dívida pública elevada sufoca consistentemente o crescimento económico?
Uma Crítica de Reinhart e Rogoff).
Herndon, Ash e Pollin concluem o artigo dizendo que "em virtude dos resultados estarem errados, isso deverá levar-nos a reavaliar a própria agenda da austeridade tanto na Europa como nos EUA".
A palavra austeridade é, como se sabe, virai.
R-R em poucas horas viram-se no centro de um furacão e foram literalmente apanhados de surpresa.
"Note que os autores enviaram-nos o manuscrito ao mesmo tempo que à imprensa mundial.
Isso não é nada habitual para um pedido de comentário sobre um manuscrito que geralmente fica em apreciação por revisores independentes é por um editor antes de ser divulgado", estranha Rogoff em declarações ao Expresso.
"Mas aceitamos que isso faz parte dos ossos do ofício", conclui.
Por coincidência, o artigo é divulgado na semana em que em Washington se realizava a reunião de primavera do FMI e do Banco Mundial.
OS ERROS DE ROGOFF E REINHART
As críticas apontadas à dupla R-R são três: um erro no próprio Excel (uma fórmula não copiada), a omissão de algumas observações da amostra e também a forma de agregação dos dados através de médias.
O resultado é uma reviravolta no resultado: o crescimento anual com a dívida acima de 90% do PIB não foi negativo de 0,1%, mas claramente positivo de 2,2% (ver tabela).
Além do mais, avaliando o que se passou nos escalões entre 90% e 120% e entre 120% e 150%, os três críticos alegam que as taxas de crescimento andam pelos 2,4% e 1,6%.
Apesar de continuar a verificar-se um abrandamento acima de 120%, não é nada que indique a "queda por um penhasco não linear".
Ou seja, não se pode concluir que haja um limiar a partir do qual tudo muda.
R-R aceitaram o erro do Excel, alegaram que havia falta de dados em 2010, que completaram depois, mas recusaram intenção nas omissões e recusaram a crítica metodológica (relacionada com a não ponderação das diferenças no número de anos disponíveis para cada país).
Rogoff confessa ao Expresso que lamenta que os críticos não tenham usado a série mais longa do artigo de 2010, e sobretudo que não tenham tomado em conta o artigo mais recente, publicado no "Journal of Eco¬nomic Perspectives", em 2012, em coautoria com Vincent Reinhart, que chega a números "não muito diferentes", com base numa série mais longa de 1800 a 2O11. Contudo.
Rogoff diz-nos que dicorda que a redução em 1 ponto percentual no crescimento que os críticos encontram seja uma ninharia: "É enganador dizer que um diferencial de 1 ponto percentual no crescimento que perdura 10 a 25 anos seja pequeno."
Rogoff foi acusado de ser um 'falcão' por ter servido a vários responsáveis políticos, até em Portugal, para justificar a política de austeridade.
Mas, no artigo de 2012, é referido que não se trata de um "manifesto" em prol da austeridade.
Aliás, na entrevista recente ao Expresso distancia-se dessa ideia.
O Nobel Paul Krugman, apesar de muito crítico do limiar dos 90%, teve o cuidado de sair em defesa do livro "This Time Is Different", de Rogoff e Reinhart, publicado em 2009.
"É importante fazer uma distinção entre o livro e o artigo", afirma, sublinhando que "o livro tem uma estratégia empírica sólida, foca-se em eventos extremos e descreve o que aconteceu".
O livro não se mete pelas difíceis relações de causalidade entre dívida e crescimento, quando os próprios R-R admitem que a correlação até pode ser ao contrário.
Rogoff, aquando da visita do Expresso a Harvard em março, foi com graça que apontou que o gabinete de Alesina era uns metros adiante no mesmo corredor, no Departamento de Economia da Faculdade de Artes e Ciências.
Nem imaginava que a maldição voaria do gabinete 210 para o 216.
joão silvestre
e jorge nascimento rodrigues
jsilvestre@expresso.impresa.pt
GASPAR USOU ARTIGO PARA JUSTIFICAR AUSTERIDADE
Em 2011, numa entrevista ao Expresso, o ministro referiu o limiar de R-R. Voltou a fazê-lo numa apresentação pública, tal como Carlos Costa
O estudo de Reinhart e Rogoff não serviu apenas para suportar a tese dos defensores da austeridade nos EUA ou nas instituições europeias.
Tal como o norte-americano Paul Ryan (congressista republicano e defensor do emagrecimento do Estado) ou o comissário europeu Oli Rehn, também Vítor Gaspar rcorreu ao célebre limiar dos 90% de dívida para justificar a necessidade de austeridade em Portugal.
A primeira vez foi numa entrevista ao Expresso, a propósito da sua escolha como figura nacional do ano, em dezembro de 2011. Questionado sobre se não era um caminho perigoso haver políticas de austeridade simultâneas em tantos países europeus, Gaspar respondia:
"Vivemos na Europa uma crise de sobre-endividamento.
A evidência empírica mostra que a acumulação de dívidas públicas elevadas cria problemas para a sustentabilidade do crescimento e cria problemas ao próprio crescimento.
Reinhart e Rogoff têm estudos sobre essa matéria (tenho a certeza de que li, no Expresso, um resumo sobre esse estudo), e consequentemente não se pode combater uma crise de sobre-endividamento através de uma acumulação adicional de dívida."
O ministro das Finanças estava correto na referência ao Expresso que, em janeiro de 2010, publicou um artigo a propósito do primeiro dos dois trabalhos da dupla Reinhart-Rogoff.
Sob o título "Quanto mais gordos menos crescem", eram apresentadas as principais conclusões do estudo e dava-se particular destaque ao caso português.
A crise da dívida soberana estava ainda a dar os primeiros passos e a defesa da austeridade, a nível europeu, começou a ganhar forma a sério nessa altura.
Gaspar voltou a citar o limiar dos 90% por mais duas vezes, pelo menos, desde então.
A primeira no final do ano passado numa apresentação powerpoint em Berlim e, segundo avança o "Sol" hoje, no prefácio à tradução portuguesa do livro de Reinhart e Rogoff que será publicado em breve.
Também Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, já referiu publicamente o limiar. J.S.